4º ANDAR
- Spock! – Dizia Asuelc – Veja este painel.
- Este facho amarelo que percorre a tela, indica
que os fiscais do sistema estão conferindo o estoque de mantimentos do depósito
regional. – Esclarecia Spock.
- Sim, mas, isso é feito uma vez por mês, e eles
já fizeram isto ontem.
- Tem certeza?
- Absoluta, e veja estes “blips”, eles vão
iniciar a checagem pela terceira vez!
- E é justo no depósito que fizemos os dois
últimos saques. Chame Lavicret.
- Sim.
O painel amigo que durante tanto tempo,
transmitiu a alegria de burlar o sistema, agora transmitia pânico.
- Veja Lavicret. Começou de novo.
- Outra checagem?
- Sim é a quarta.
- Quarta? Eles devem estar dando falta de
mercadoria.
- Mas como? Sempre deu certo.
- Dimitri! Dimitri!
- Sim.
- Diga, você conhece o nosso método de
alimentação, e também o Sistema. Eles estão fazendo diversas checagens
sucessivas, você tem ideia por quê?
- Só vejo uma possibilidade.
- Qual?
- Devemos ter pego, mercadorias a mais, a menos,
ou trocadas das que sabotamos na lista.
- Quem está encarregada da cozinha?
- A mulher das cavernas.
- É a Nency.
- O facho amarelo outra vez. No mesmo depósito.
Não há dúvida, o problema é conosco.
- O que há – Pergunta Nency.
- Você tem conferido as mercadorias que chegam,
com a cópia da lista?
- Rigorosamente.
- E não tem acontecido nada de anormal?
- Não.
- Espere! Houve algo de anormal – Lembrou Nency
– O abridor de latas de preso sobre a pia, tem um numerador automático que
acusa, três latas as mais abertas, do que as que, entraram no estoque nos
últimos três meses.
- Por que não comunicou isso antes?
- Foi idiotice minha… desculpe.
- Personagens do palco da vida, não permitiam
que o Sistema nos roube a harmonia.
- Sim, a incompreensão e a impaciência, nada
mais são, que irmãos em uma família, cujo sobrenome é Ignorância.
- Não vamos dar aos que nos assistem pela tela
da vida o prazer de nos chamarem de loucos.
- Esta nuvem, de filosóficas advertências,
quebrou a impetuosidadede gênio de Dimitri, que agora abraçava Nency e lhe dava
um beijo na testa.
- Bem, já sabemos que provavelmente já tiramos
estas três latas a mais. Agora temos que pensar em uma solução.
- Hoje seria o dia de fazer outra introdução na
lista, para amanhã irmos retirar mais mercadorias no depósito, mas creio que
isso agora está fora de cogitação.
- Devemos tomar todo nosso estoque de
mantimentos e aplicar o processo de condensação, para transformá-lo em pílulas
energéticas. Não sabemos quanto tempo isto tudo vai durar.
Teve início assim, o período de fome no bueiro.
Todas as atividades foram paralisadas. Era necessário poupar energias, para
suportarem a falta de alimento no corpo. Em alguns nem se percebia a fome, em
outros ela já trazia um desespero inegável.
- Trancados, presos, com fome. Trancados,
presos, com, fome. Trancados, presos, com fome – repetia Frankenstein
caminhando de um lado para o outro.
- Frank! Vem cá! – Chamou Asuelc – As crianças
Frank, temos que ser fortes, por causa delas!
- Já estou sendo forte por causa delas, desde
que parei de me alimentar, para que elas comam.
- Você não tem pego sua porção de pílulas?
- Esquece Asuelc, desculpe, está tudo bem.
- Frank! – Diz Asuelc sorrindo – Eu também não
tenho pego a minha.
- Bem, dois estômagos vazios, roncam melhor do
que um.
Se havia algo surpreendendo a todos era a
atitude do menino Raul. Ninguém dizia, mas todos entendiam: Durante todo o seu
silêncio ele armazenara forças interiores que agora se revelavam em auxílio aos
seus semelhantes. Palavras amigas de conforto e incentivo, saiam daquela boca
pequena, como balas de um revolver de pequeno calibre, mas que não deixam de
produzir o seu efeito.
Desde a chegada de Lavicret, algumas coisas
mudaram no bueiro. Havia agora, uma reunião de cúpulas formadas por elementos
eleitos. O singular nessas eleições, é que só poderiam pertencer à cúpula
aqueles que fossem eleitos por unanimidade, por todos os moradores do bueiro,
principalmente as crianças. As decisões tomadas por esta cúpula também só
entrariam em vigor se ao serem apresentadas, fossem aprovadas, da mesma maneira
unânime. Aparentemente isso parece impossível, mas se torna possível quando o
interesse de todos é apenas o bem comum.
- Eu sou o culpado. Todos vão morrer por minha
causa. Eu sou o culpado. Eu destruí todo o trabalho de vocês. Matei a todos.
Sou pior do que o Sistema, pior do que os fiscais! – Gritava o gordo, loirinho,
em cima de um caixote.
- Controle-se, ninguém aqui é o culpado pelo que
estamos passando. Vamos vencer isso tudo, juntos. – Consolava Raul.
- Você não sabe o que diz. Ei! Escutem todos!
Toda esta fome e tristeza, é culpa minha, minha! – Batia o menino no peito.
- Asuelc! Vamos levar este menino para repousar?
- Sim Judy, claro.
- Tire as mãos de mim! Eu não mereço amor,
mereço desespero, eu quero morrer.
- Está bem, - Disse Plach, aplicando uma técnica
inversa – diga o que quiser e nós vamos ouvir.
O menino se calou.
- Como eu gostaria que estes meus gritos fossem
só desespero sem causa, que apenas este argumento de me deixar falar, fosse
suficiente para resolver esta situação. Mas não é Plach, não é…
- Não continuamos a ouvi-lo – disse Plach.
- As três latas a mais, fui eu quem pegou no
depósito.
- Você o quê? – Gritou a menina de tranças.
- Sim fui eu.
A maioria dos presentes estava cabisbaixa.
Ninguém olhava, ninguém condenava, todos sabiam que alguém o tinha feito, e
quem era, não importava.
- Eu fui com Morch ao depósito nos últimos três
meses e todo mês eu roubava um queijo e uma lata de marmelada… Vocês ouviram?
Fui eu! Eu comi tudo sozinho escondido, e agora todos estão com fome por minha
causa…
A voz do garoto fazia eco do bueiro.
- Vocês não vão me criticar? Vocês não vão me
bater? Pelo amor de Deus, diga alguma coisa, não façam isso comigo, digam
alguma coisa…
- Você já disse tudo, filho e nós já ouvimos.
Agora calma – Amava-o Plach.
- Pois se você quer me ouvir ouça: - Disse uma
menininha que mais parecia estar recitando “batatinha quando nasce” – Você é
gordo, é guloso, você é Judas é Silvério dos Reis, é Dalila, você é traidor!
- Não! Interviu a voz rouca de Chapeuzinho
Vermelho – Ele é criança! Se estamos vivendo em uma época tão louca, em que
comer queijo com marmelada, coloca em risco a vida de meia centena de pessoas,
seria muita covardia, lançarmos toda a responsabilidade desta loucura sobre uma
criança. Há quanto tempo as crianças do mundo todo não comem marmelada com
queijo? Uma vez porque eram pobres, outra vez porque a ambição desenfreada dos
homens, elevou o custo de tudo a tal preço, que queijo com marmelada só se via
em sonho. E agora, computadores e Informática? ? ? Para o inferno com a
informática, e viva a marmelada.
O menino Peter, se transformara num esqueleto.
De todos os abatidos ele era o mais abatido. As pílulas energéticas não faziam
efeito nele e a dias ele já não ficava de pé. Ao ouvir as palavras da velha
Chapeuzinho, num esforço sobre-humano, como um bêbado, encostado no batente da
porta, começou a bater palmas. Fracas palmas, que mal se podiam ouvir pala
falta de força e energia. Um e outro, aqui e ali o seguiram e temos agora, um
grande aplauso, que cresce, cresce e se transforma em euforia, como se batendo
palmas todos estivessem esbofeteando a vida.
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